Para que vocês conheçam os meus motivos, deixo esta carta explicando como tudo aconteceu...
“Saio do trabalho às 19:00h e vou caminhando para minha casa que fica apenas à seis quarteirões de distância. Caminho rápido, pois parece que o céu castigará a terra com uma grande quantidade de água muito em breve. A noite está escura e pouco se pode ver da rua com fraca iluminação.
Preocupo-me com o que farei para o jantar, afinal moro sozinha e muito longe de minha família, da qual não tenho notícias há muitos anos. Acredito que eles me renegaram a partir do momento em que saí de casa para buscar uma vida diferente da deles. Respeito essa opinião, mas creio que cada um deve seguir seu caminho como acha que é melhor.
De repente, acordo de meus devaneios, quando ouço um som vindo de um beco. Fico apavorada, mas minha mente, pensando racionalmente, sugere que foi apenas um gato. Mesmo assim, acelero meus passos para que esteja em casa logo. Lá me sinto segura. Todo o medo irracional que tinha me acometido quando ouvi o barulho anteriormente volta com toda a força quando ouço um outro som vindo atrás de mim. Olho para trás e não consigo ver nada. Estou passando por uma praça escura, com uma pobre iluminação apenas em seu centro. Começo a ouvir passos, mas já não sei se é apenas a minha mente me pregando uma peça ou se os ouço realmente. Tudo está deserto pois não são muitas as pessoas que ficam para fora de casa em uma noite escura prestes a derramar uma tempestade.
Começo a correr desesperadamente. Já não sei o que estou fazendo. Corro em busca de uma ajuda que sei, não será encontrada. Grito de pavor quando percebo alguém forte, grande e monstruoso correndo atrás de mim. Lembro-me que ouvi rumores de alguém assim, há pouco tempo... Não, não pode ser o que estou pensando... Continuo a correr, mas ele está se aproximando mais e mais. Começo a olhar ao redor a procura de algo que possa me proteger... Algo afiado para que eu possa ameaça-lo... Ah, se eu tivesse uma arma! Fui sempre tão passiva, como estou pensando nisso?! Acho que quando o perigo está próximo, ele nos turva a visão! Meu cérebro pensa muito rápido neste momento. A cada passo que dou, mil pensamentos surgem enquanto os anteriores são esquecidos, mas um não sai de minha mente: ‘Eu preciso de algo que possa matá-lo...’.
Quando percebo que ele está se aproximando mais, está apenas há alguns passos de distância eu grito de terror, um terror enlouquecido que o fez parar. Também paro, pois sei que não haverá tempo de eu chegar à minha casa e mesmo que desse, até eu abrir todas as trancas ele teria me alcançado. Também sei que os vizinhos não gostam de mim e não me ajudariam. Observo-o atentamente e, sem tirar os olhos dele, procuro por algo afiado ou pontiagudo no chão. Quase enlouqueço de terror, pois percebo que não há nada no chão que possa me defender, além de uma sacola plástica. Quando ele dá um passo em minha direção eu grito novamente, um grito agudo de pavor. Começo a caminhar lentamente, de costas, quando tropeço no meio-fio e caio no canteiro. Começo a me debater desesperada quando ele se aproxima com aquela face asquerosa e cega pela loucura. Já não sei se a minha loucura é maior ou menor que a dele. Ele parece estar se divertindo em me ver tão amedrontada. Quero fugir, voltar para minha cidade no interior, desejo voltar no tempo e nunca pensar em vir para a cidade... Mas agora já é tarde demais... Colhemos o que plantamos e este será o preço por minhas sementes...
Ele me amarra e amordaça e eu não consigo sequer me debater. Sua força é enorme e é difícil até de respirar. Ele volta para o beco, comigo nas costas e me joga dentro de um automóvel velho cheirando tão mal quanto um animal de grande porte que jaz, sem vida há no mínimo dois meses. Já não sei o que fazer e estou cega pelo medo.
Quando ele dá a partida no automóvel, eu começo a me desesperar novamente, mas não consigo sequer pensar em alguma saída. Procuro por soluções fantasiosas que não darão certo jamais, pois estou amarrada e amordaçada. Começa a chover forte. O tempo transcorre velozmente enquanto estou naquele carro horrível com aquele maníaco. De repente, ele pára o carro no meio de um bosque. ‘Já estive aqui’, penso e meu terror aumenta pois sei que ninguém ouvirá gritos vindos daquele lugar de forma alguma. Ele me atira violentamente para fora do carro, me desamarra, tira a mordaça, e despe-se completamente. Logo, tira a minha roupa e inicia o ato forçado. Começa a me tocar e eu não consigo contar o tempo. Sinto o gosto pútrido de seus lábios tocando os meus, como os de um animal selvagem. Chorando, peço para ele parar, mas nada faz com que se acalme.
Então, percebo que algo reluziu em sua calça, logo ao lado. Percebo que é uma lâmina afiada. Começo a raciocinar rápido e me esforço para pegá-la sem que ele perceba. Sob a forte tempestade, um crocitar agudo de corvo soa, congelando minha alma. Neste momento percebo que seu rosto enche-se de tensão. Gosto da sensação que isto me traz. Parece-me que o escuro animal agourento sabe o que estou prestes a fazer. Em uma árvore próxima uma luz brilha acompanhada por um estrondo terrivelmente forte. Assusto-me e ele também, e percebo que aquele é o momento certo de acabar com tudo aquilo. Apanho a faca e cravo-a em seu pescoço. Ele não tem tempo para gritar, mas tenta me estrangular sem forças. Seu sangue corre sobre mim, mas tudo acabou. Morreu quase que instantaneamente. Uma morte muito boa para ele. Seu falo está ainda em meu interior.
Com muito esforço saio debaixo dele e me visto. Olho para o céu, agradecendo o raio que caiu sobre a árvore e me deparo com a lua cheia aparecendo por entre algumas nuvens ainda próxima ao horizonte. A lua está avermelhada, como se o sangue que me cobre esteja sobre ela também. Sobre mim, pesa uma morte, mas não sinto tanto remorso. Tudo foi como deveria. Nós colhemos o que plantamos e foi isso o que o esperava. Observando o corpo sem vida, me assusto quando um bando de corvos passam por mim e atacam-no violentamente. Vejo-o sendo dilacerado e sinto um prazer incontrolável.
Depois de tudo acabado, vou caminhando até minha casa, enquanto chove muito. Já não vejo a lua, mas isso não é tão importante. Não é tão importante correr da chuva, comer ou dormir... Nada mais é importante. Chego finalmente em casa e vou tomar banho. No banho, o sangue que ainda restava em meu corpo foi-se pelo ralo. Visto uma roupa limpa e coloco a suja na lavanderia. Sento à mesa e tomo um café forte e sem açúcar. Minha alma está imersa em uma escuridão distante. Já não consigo distinguir o real do imaginário. Meu coração está envolto em trevas obscuras.
Vou para a cama, mas não consigo dormir. Não sei ao certo quanto tempo se passou depois que tudo aconteceu. A imagem dele olhando para mim com o olhar reprovador e vingativo não sai de minha mente. Seu sangue correndo sobre mim... Mas ao mesmo tempo, sinto ódio pelo que me fez. Nada teria acontecido se ele não tivesse tentado nada contra mim... Durmo com dificuldade, imersa neste misto de culpa e ódio. Tenho pesadelos e acordo no meio da noite pensando se tudo foi apenas um sonho ruim, mas sei que não foi. Em meus pesadelos, vejo sangue e ele me persegue com o terrível ferimento em seu pescoço. Não pára de sangrar e ele me culpa por tudo. Eu tento fugir mas não encontro saída e ele tenta tirar minha roupa , até que acordo desesperada.Tomo muitos calmantes e caio em sono profundo.
Acordo com o sol em meu rosto. Vou ao banheiro e percebo como estou abatida. As olheiras são enormes, meu cabelo está horrível, e sinto tantas dores em meu corpo que parece que fui atropelada por uma manada de búfalos, mas não me preocupo muito com isso. Começo a ser acometida por um estranho senso de loucura. Olho para meu reflexo no espelho e quebro-o com um golpe. Minha mão começa a sangrar muito, mas não procuro nada para estancar o sangue. Não me preocupo com nada mais, afinal de contas, tudo perdeu o sentido. A dor é uma benção, pois me faz esquecer, por breves momentos, o que ocorreu. A partir daí, fraca, pois perdi sangue, os meus momentos de sanidade são poucos.
Vários dias se passam e eu fico em casa. Muitas vezes o telefone toca e, uma vez tomada pela loucura, atiro-o longe. Vivo este fragmento de vida por um mês e meio e então tomo a melhor decisão. Encontrei a saída para meus problemas, muito próxima de mim. Já não agüento mais, o peso de uma morte sobre meus frágeis ombros. Não posso continuar a viver nesta situação. Libertarei minha alma deste inferno em que minha vida se transformou. Não mais suporto estar dentro deste corpo impuro e nojento que foi violado por uma criatura bestial que me persegue em pesadelos e ainda me culpa por sua morte.
Beberei, agora, do melhor cálice. O doce cálice da morte. A taça, que para alguns é amarga, para mim é tão doce quanto o mel. Não... Muito mais doce que o próprio mel. A solução para todos os problemas mundanos em que me encontro e que estava tão próxima de mim. Tudo está preparado. Coloquei o doce veneno em um lindo cálice. Misturado a fortes calmantes, nem mesmo perceberei quando minha alma estiver liberta. Preparei-o para que sua tonalidade fosse como a do sangue, para que eu possa deliciar-me até o último momento com o sangue simbólico daquele ser que me atormenta dia e noite e que foi refeição dos corvos. Ah, como foi prazeroso vê-lo cortado e rasgado em pedaços diante de mim. Abençoados sejam os corvos que estavam à espera de uma presa. Amaldiçoado seja ele, quem me fez sofrer durante tanto tempo. Parece-me que uma eternidade se passou desde o ocorrido. Já não sou capaz de distinguir o tempo. Consegui fazer sua contagem apenas até meados do segundo mês e depois, não sei quanto mais se passou."
Agora me despeço de tudo e todos, e espero que tenham compreendido minhas razões. Adeus vida, adeus mundo! Adeus aos corvos e adeus ao raio que me fez capaz de tirar a vida daquele animal. Adeus pessoas mesquinhas e ignorantes que povoam este mundo nojento. Já não desejo estar próxima a vocês, quero apenas libertar minha alma e observar atentamente sua autodestruição. Que assim seja! Maldita seja a humanidade e que ela pague por sua idiotice!
JF
Escolha
Há 8 anos
Um comentário:
Não tirei os olhos das suas palavras, até o último ponto, nem por um milésimo de segundo. De tirar o fôlego...
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